A Cor-de-rosa e o Negro.

A Cor-de-rosa e o Negro.

A cor-de-rosa e o negro

Era uma tarde abafada. O céu pesado anunciava a precipitação. Eu retornava da escola, e pelo banco detrás do carro corria a notícia que um presente me esperava em casa.

Meu corpo pequeno se encheu de entusiasmo. O presente vinha de uma amiga da família, da mulher que era dona de unhas enormes, certamente as maiores que conheciam a longevidade dos meus 5 anos conhecia. Estavam sempre pintadas de cor-de-rosa, numa paleta intermediária entre o rosa-chiclete e o rosa-pálido. Era um tom habitual nos anos 80, mas que hoje, ninguém lembra que existiu.

Aquela vaidade na ponta dos dedos era o meu entretenimento nos jantares de adultos, onde muitas vezes eu era a única criança sentada à mesa, porque gostava de fazer companhia ao meu pai viúvo. O cor-de-rosa destacava aquela mulher dentre as outras. Seus dedos alongados pelas unhas crescidas tornavam o manuseio dos talheres mais delicado; o pinçar dos coquetéis quase um ato de eleição; e emprestavam eloquência ao que afirmava com as mãos. Eu não tirava os olhos daqueles gestos cor-de-rosa, desde a entrada até o cafezinho.

— Posso tocar? Elas doem? São mágicas? Tiram-se para dormir? Já nascem pintadas de cor-de-rosa? - só faltava eu pedir para arrancar um dos dedos da moça.

Ela contou que mantinha as unhas daquele jeito em homenagem ao seu próprio nome, Rosa. Ficou explicado o fascínio da situação: era uma beleza genuína, a Rosa empossada de cor-de-rosa. Transbordavam verdades naquelas garras.

— Suas unhas são iguais às da Barbie. E eu só brinco de Barbie, porque não tenho nenhum bebê de brinquedo.

— Não sabia que era possível existir uma menina sem um bebê. — Ela respondeu, enquanto me apertou o nariz com unhas pontiagudas.

 

De volta ao banco do carro: chegamos em casa e o elevador demorou uma vida até atingir o décimo segundo andar. Com a porta aberta, eu corri sala adentro até alcançar o meu quarto. Em cima da cama esperava a caixa retangular, embalada com o papel de presente verde e dourado das Lojas Americanas, arrematado com uma estrela feita de fita. A caixa imaculada durou quase nada. A estrela foi arremessada ao chão, e o papel desfeito num voo rasgado.

O presente era um bebê. Um bebê negro. Com olhos de bebê negro, pele de bebê negro. Até o cabelo, o nariz e o branco do olho eram de um bebê negro. Infelizmente, no parquinho que eu frequentava, alguns botaram uma cara de surpresa ao serem apresentados ao meu filho. Mas o preconceituoso era logo reprimido pelo meu olhar puerperal, da mãe protetora que eu me tornara. O bebê - eu quase me esqueço desse detalhe - era uma menina. Foi batizada numa banheira de brinquedo que jorrava água de verdade, e ganhou nome. Daniela sem sobrenome nasceu ao final do dia escolar, em alguma estação do ano que precisa chover. A menina foi criada com afeto, porque com aquele bebê negro eu brincava de vivenciar uma relação que me faltava, que era a “filhernidade”, ou o caminho inverso da maternidade.

Eu cresci, e a Daniela se encaixotou na infância. Por volta dos 14 anos surgiu a Marisa, uma professora de Português que sempre anda na minha memória. Eu queria ser igual a Marisa, dona daquelas palavras fantásticas e detentora da sílaba tônica. Adorava vê-la, tão negra e forte, em um colégio majoritariamente branco. Não havia quem tivesse a audácia de dar um piu fora do tom na sua aula, porque a Marisa impunha respeito. E os alunos lhe reverenciavam.

Mais tarde foi a Tânia, empregada que muito me ajudou quando chegaram os meus filhos. Tinha tanto medo das pessoas, que quando eu chegava mais perto, ela quase saía correndo. Um dia teve mesmo que correr. Juntou sua família às pressas, numa passagem só de ida para o interior. Queria salvar seu filho do crime, e do único emprego em que foi admitido na cidade grande.

Guardei um átrio inteiro no peito para a Gorete, enfermeira que cuidou da minha avó até o seu último dia. Ainda que a família lhe confiasse a guarda do tesouro matriarcal, alguns lhe culpavam pelo sumiço das tralhas velhas, que o desuso havia tratado de esconder.

Através do meu bebê negro e também por ter conhecido tantos negros especiais, que me marcaram positivamente a vida, aprendi a amar e a respeitar a pele escura. E por outros que admiro, que inspiram a mim e ao mundo, nunca me considerei preconceituosa. Mas minha certeza se desmanchou quando eu, já adulta feita, num dia de chuva forte, almoçava protegida em um daqueles restaurantes que exibem clientes na vitrine. O gnocchi era macio e quente, até a garfada interrompida por duas crianças negras.

Elas grudaram os olhos no meu prato, pelo lado exterior do vidro. Suas mãozinhas limpavam o embaçado que o vapor das bocas vazias faziam ao transparente fino, que nos separava em dois mundos. Mudas, mas não de fome. Meu desconforto fingia que não lhes via, quando sabia que o correto seria lhes chamar para o lado de dentro. Eu não ajeitaria a vida miúda daquelas duas pequenas, mas poderia muito bem oferecer uma refeição.

Um segundo nessa dúvida e as crianças fogem da vista da vitrine, agora admirada ao contrário. Reaparecem encharcadas, dentro do restaurante. Castigadas pelo mau tempo assim como os seus pais, que se sacolejam da água enquanto irrompem na sala e se apoderam de quatro lugares vazios em uma mesa grande, cheia de gente que lhes secam com abraços e festejam sua chegada.

Eu já nem mastigo, mas me engasgo de preconceito. Por mais que eu os adote, os ame e os admire, serei sempre uma branca de vista curta sobre o tema. Enjaulada na limitação de ser quem sou, fantasiando com um brinquedo de plástico. Eles não precisam da minha benevolência, eles querem que eu estraçalhe a redoma de vidro, de onde faço o meu julgamento.

Posso tentar me vestir da pele do outro, e, ainda assim, nunca saberei como é ser a Rosa pintada de cor-de-rosa. Mas daquela vitrine em diante, só esmalto as minhas unhas de negro.

 

Foto: Kelly Sikkema




Autor(a): Alice Maria de Medeiros



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